[TUTORIAL] - rinaldile

Fama é, muitas vezes, uma maldição. Hercules podia dizer.

Anos inteiros sem sequer poder sair para jantar sem que fãs o parassem para autógrafos, perguntas técnicas até demais, palpites que não eram bem vindos. Leigos acreditavam saber mais do que ele sobre a única coisa que sabia fazer: dar socos. Durante sua vida toda, Hercules socou. E graças aos socos, Hercules ganhou dinheiro e fama. Mas agora estava cansado. Queria voltar para casa e se reaproximar da filha que passou a vida inteira longe do pai. Ela era uma órfã com pais vivos.

Entretanto, era o fim de sua carreira. Talvez fosse competir em mais um último combate antes de voltar para Minion, onde sua filha Despina o esperava. Não podia contar com a mãe da garota, e isso o deixava chateado. Mas alguém precisava manter o padrão de vida que Despina estava acostumada, e a única maneira de conseguir isso era sacrificando a sua presença para continuar lutando mundo afora. Era um preço a se pagar, e Hercules não tinha pistas se isso estava sendo positivo para sua filha. Ele torcia que sim.

O pugilista acordava depois de um breve descanso. Tomou remédios na noite passada e acabou apagando. Não sabia onde estava, não sabia se estava acompanhado, mas tentou se levantar, checando cautelosamente cada músculo de seu corpo para evitar a surpresa de uma área dolorida. Ele se sentaria onde quer que estivesse deitado antes, e suas mãos procurariam o bigode, o ajeitando em duas pontas cacheadas para cima. A única mecha de cabelo que lhe restara dançava acima da testa, e ele agradeceu por ainda ter cabelo.

— Alguém vai me trazer um café da manhã? — ele falaria esperando alguém de sua equipe lhe acudir, mas a fome era tanta que ele não esperaria tanto para isso. Uma fruta seria o suficiente para manter o corpo sarado, e, caso ninguém aparecesse, procuraria um buffet, cafeteria, bar, restaurante, o que fosse. Sua única exigência no momento era se alimentar.

Deliciava-se com tudo o que lhe fora entregue. Com mais classe do que se esperaria de um homem de seu tamanho, Hercules escolhia seu próximo petisco e o colocava para dentro em poucas mastigadas. Foi nesse ritmo que ele conseguiu o feito de ser um comilão educado. Os anos fizeram dele um homem sofisticado, com gostos refinados e etiqueta impecável. Parecia que nunca estivera em Dawn Island durante a sua infância, pulando de cara no prato de comida a cada três dias de trabalho árduo. O luxo lhe vestia bem, e ele era a cara da riqueza. Um nobre que não deixava transparecer que um dia estivera entre a plebe.

Miyasato Tadamichi estava no recinto também. O pugilista o conhecia há anos, era para ele que trabalhava. O homem era pequeno e franzino, velho como o vinho que bebera na última noite de comemorações. Quem olhasse para o homenzinho saberia que ele estava ali para mandar, não obedecer. Hercules sabia disso, e decidiu manter a classe e cautela em todas as suas respostas, já sentindo o cheiro do que vinha pela frente.

— Está aproveitando a estadia, Hercules-san?! Espero que sim. É muito bom te rever novamente, como você está?

Ele apertou os dentes sobre o queijo antes de engoli-lo, balançando a cabeça positivamente, respondendo com delay:

— O prazer é meu, Tadamichi-sama. Estou bem.

Alguma coisa parecia estranha naquela visita. Hercules era bom em ler as entrelinhas com pessoas de alta classe após anos jantando na mesma mesa que elas. Muita simpatia assim não era comum, ainda mais vindo de alguém tão poderoso. Ele não demonstrou, mas estava um pouco tenso quanto ao que viria a seguir. Seria demitido? Alguma notícia ruim estava esperando? Muitas coisas passavam pela cabeça de Hercules, mas ele não conseguia pensar em nada positivo para sair da cabeça do patrão. Ele manteve a educação e esperou que algo acontecesse. E isso não tardou.

Tadamichi continuou:

— Precisamos falar sobre a sua próxima luta. — a forma com que invadira seu espaço pessoal, atacando o bacon, não agradou — Trata-se de um adversário muito promissor e com a vantagem de ter o dobro de sua idade - mais novo - a qual nossa organização está considerando fortemente apostar no futuro. Talvez você devesse reconsiderar a sua posição e passar o bastão para ele já nessa luta, se é que me entende.

Hercules precisou engolir o pão que estava em sua boca para poder entender o que estava sendo sugerido ali. Ele tentava ao máximo evitar que veias saltassem em sua testa. Pensou em coisas boas, em voltar para a família, em visitar os parentes em Dawn Island, a filha em Minion, os amigos pelo mundo. Mas então o pensamento sobre sua carreira martelava em sua cabeça. Todos os socos que levou, toda a dor que suportou, e todos os adversários que venceu durante todos aqueles anos. Ele tinha um legado e uma reputação para manter. Tadamichi era um homem muito poderoso e desobedecê-lo poderia ser perigoso. Hercules se incomodou com o silêncio instaurado no quarto por conta da sua demora em responder.

Ele respirou fundo, ajeitou a postura e tentou decidir em milissegundos se era melhor concordar ou tentar argumentar a lógica do anfitrião.

— Bem... Eu... — ele soltou um pouco o ar, tirando a tensão dos ombros — Vai ser um prazer conhecê-lo. Obrigado por tudo. Estou ansioso para essa luta.

Estava furioso, inconformado, ofendido, colérico, enfezado. Mas ainda assim, desenhou um sorriso encobertado pelo bigode loiro. Hercules procuraria comer o máximo que pudesse, afinal, o café da manhã era a refeição mais importante do dia. E que dia aquele seria. Seu último ato seria defender o seu legado mais do que nunca. Estava ansioso para a luta, e faria o que fosse preciso para que esta acontecesse sem nenhum problema. Sua batalha não seria somente com quem estaria do outro lado do ringue, mas com a organização que o via como uma fonte de dinheiro e propaganda. E Hercules era mais do que isso. Ele era um semi-deus. Esperaria alguma ordem ou então a saída de Tadamichi para se levantar de vez e correr para o chuveiro mais próximo. Era hora de se preparar para o combate de mais tarde.